Método para pesquisa
Para a imersão no Arraial de Nazaré foi utilizado o conceito do autor Laplantine (2012) a “aculturação invertida”, ou seja, uma ruptura metodológica que realiza a pesquisa etnográfica a partir da observação indireta das relações humanas. Esta prática não consiste em uma coleta de grande quantidade de informações, mas na capacidade do etnógrafo viver e impregnar-se das tendenciais principais da cultura estudada, de seus ideais e de suas angustias.
Nesse sentido, esta ruptura provém da antropologia entendida como microssociologia, a qual privilegia “o que é aparentemente secundário em nossos comportamentos sociais” (Laplantine, p. 153, 2012). Para Laplantine, a razão desta abordagem consiste no estudo do próprio contexto em que se situam os objetos, “ a rede densa das interações que estas constituem com a totalidade social em movimento” (Laplantine, p. 156, 2012).
Contudo, segundo Laplantine, “o pesquisador deve considerar o lugar sócio-histórico a partir do qual fala, como parte integrante de seu objeto de estudo” (Laplantine, p. 168, 2012). Assim, essa condição histórica e cultural determinada ao pesquisador o coloca também como observado, um sentido que dá possibilidade à reflexão da problemática do sujeito na própria atividade cientifica. Isso significa que tais condições podem “fornecer à nossa disciplina vantagens cientificas consideráveis, desde que saiba aproveita-lo” (Laplantine, p, 173, 2012).
Além do método descrito pelo autor Laplantine, a imersão no Arraial de Nazaré utilizou o texto do autor Roberto DaMatta, “O que faz o brasil, Brasil” (Rocco, 1986), especificamente o quinto e o sexto capitulo, “O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer” (p. 65-79) e “As festas da ordem” (p.81-93), onde DaMatta realiza uma descrição tanto dos “ritos de inversão”, como o carnaval, quanto dos “ritos de reforço”, que são as festas da ordem.
No capítulo “O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer”, o autor DaMatta descreve que nas sociedades existem rotinas e ritos, trabalhos e festas. O cotidiano é feito pela rotina, pelo trabalho enquanto que o extraordinário são as festas, os rituais, as comemorações, momento em que a sociedade pode ser iluminada e ver a vida “por um novo prisma, posição, perspectiva, ângulo...” (DaMatta, p. 67, 1986).
O extraordinário, segundo o autor, pode ser celebrado de modo individual ou coletivo. Individualmente é representado por uma memória guardada e no sentido coletivo pela memória social, por momentos históricos de crise, acidente, festas ou milagres de uma sociedade. A diferença entre a rotina e o extraordinário consiste em inverter a hierarquia, o poder, o dinheiro e o esforço físico em alegria, liberdade, igualdade, e como descreve DaMatta, o momento do extraordinário “sugere um universo social onde a regra é praticar sistematicamente todos os excessos” (DaMatta, p.73, 1986).
Deste capitulo concluo a ideia de que o Arraial de Nazaré é uma forma de alegria que desconstrói a rotina, um momento “onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo” (DaMatta, p. 73, 1986).
De outro lado, o Arraial de Nazaré por pertencer a uma celebração religiosa que oferece ao indivíduo um momento próximo a igreja e que é realizado somente no período da celebração do Círio de Nazaré, pode ser considerado uma forma de promover a glorificação e manutenção da ordem cívica e religiosa. Como coloca DaMatta (1986):
“O patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas regiões neutras, mas hierarquicamente ordenadas, onde existe uma espécie de carnaval devoto ou terra de ninguém, já que todos podem encontrar-se com todos dentro desse espaço. Mas é preciso acentuar que essa carnavalização (ou troca de lugar) nada tem a ver com excessos ou com a possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo. (...) o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais. (...) São maneiras de marcar a contenção e de promover a uniformidade e a tranquila obediência dos fiéis ou servidores, já que tudo isso conduz a uma visão ordenada da própria ocasião formal. (...) a contenção do corpo significa, de certo modo, a liberdade do espírito, que pode ou não estar presente com a mesma convicção na solenidade. ” (DaMatta, p. 85-86, 1986).
Esta forma de perceber esta celebração exprime a noção de devoção e de ordem. O Arraial de Nazaré como uma festividade de origem cívica e religiosa propõe uma perspectiva etnográfica entorno das formas e conteúdos com que as pessoas se comunicam, em suas continências físicas e excessos.
Como uma festa extraordinária, a perspectiva etnográfica está entorno das alegrias e descontrações, dos momentos surpreendentes que não existem durante o trabalho rotineiro. Nesse sentido, esta incursão propôs coletar situações e personagens com esta perspectiva.
Imersão no Arraial de Nazaré
Desde a primeira procissão do Círio de Nazaré, em 1790, o Arraial de Nazaré se faz presente. No primeiro ano da procissão, segundo Dubois (1953), a feira de produtos regionais da lavoura e indústria reuniu pessoas de vilas e cidades do interior através de uma circular que exigia a contribuição para a exposição.
Neste período inicial de celebração do Círio de Nazaré, o Arraial representava todo o movimento religioso no atual bairro de Nazaré. Em 1849, o juiz da festividade, Carlos Augusto Leraistre, descreveu as características do terreno do Arraial tendo uma perspectiva para o desenvolvimento da área:
“Quando cheguei a esta Província, somente havia uma estrada, que comunicava o campo da pólvora com o dito arraial, cuja praça do lado do leste da igreja, estava em mato. Reconheci que este sitio, por seu plano elevado, arejado e sadio, era próprio para nele se edificarem quintas, e para todo o tempo para nele estender-se à cidade, para que oferece excelentes proporções” (Leraistre apud Dubois, p. 68, 1953).
Nos anos seguintes, o Círio de Nazaré seria determinado a acontecer no segundo domingo de outubro e o Arraial se tornaria o conjunto de manifestações. No final do século XX, a praça Justo Chermont seria construída ao lado da Basílica de Nazaré onde, até os dias atuais, são montados brinquedos, barracas de comida regional e de artesanatos.
Neste ano, uma semana após a celebração do Círio de Nazaré, em uma terça-feira à tarde, percorri o Arraial de Nazaré caminhando pelo parque de diversões e pelo CAN sem ter um trajeto determinado.
Este parque é composto por um parque de diversões, com aproximadamente 10 brinquedos com a capacidade para 20 a 30 pessoas, e uma tenda provisória com estrutura pré-montada de ferro coberta por lona branca resistente à água com divisórias entre as locações em tecido elástico.
As cadeiras e mesas de plástico que ali foram dispostas para o conforto dos frequentadores são de fácil remoção, se por acaso a chuva cair. Nesse sentido, a tenda pré-montada e os móveis foram projetados para resistirem às condições climáticas.
Os frequentadores, por sua vez, dispõem de calma e alegria. A maioria das pessoas que percebi passeiam pelo parque de maneira contemplativa, de mãos atadas com seus filhos e pares, e não se incomodam em esperar a próxima partida do brinquedo. São grupos que contem seus exageros, porém relaxam suas gestualidades naturais.
Parque de diversões no Arraial de Nazaré. Fonte do autor. Data: 19/10/15. |
Diferente destas pessoas, os grupos de pessoas formados por adolescentes, em grande parte colegiais, são mais comunicativos e impacientes. A diversão é causada pelo agito do parque mais sempre entre os indivíduos. Há por exemplo, a questão do registro do momento ou a selfie, que constantemente utiliza o celular em direção a si mesmo para se fotografar, apenas para expor a si, o entorno e para divulgar em redes sociais.
Esta agitação frequente de grupo de jovens é acompanhada de risos e piadas com gestos desprovidos de continência. Este segundo grupo de pessoas é condizente, em parte, a utopia e ao extraordinário, contudo, compreensíveis.
Devido ao Arraial de Nazaré corresponder a uma festividade de representação religiosa e por ser incentivada a diversão da sociedade, a segurança nas entradas do parque, o policiamento na parte externa, a vigilância de técnicos nos brinquedos afronta a ideia do autor DaMatta (1986) quanto à celebração que permite a descontração porem num fundo impositivo de ordem.
Nesse sentido, o Arraial de Nazaré é também uma forma com que a igreja mantém sua ordem sobre a população. Naturalmente, isto é notado por estar localizado ao lado da Basílica e veridicamente pela existência de homens de preto em vários pontos do percurso. Isto é bom, por manter a segurança do parque que, ainda assim, é alvo de vandalismo.
No fim da imersão, uma forte nuvem de chuva se aproximava. Quando o sol já se encostava, as luzes da roda gigante se acenderam para mais algumas voltas noite a fora. Com a máquina fotográfica em mãos, registrei-a em uma imagem que marca este momento e um conclui a descrição contemplativa feita sobre o Arraial de Nazaré.
Roda-gigante do Arraial de Nazaré. Fonte do autor. Data: 19/10/15. |
Imersão no Entorno do Arraial de Nazaré
Durante toda a celebração do Círio de Nazaré, a Arraial acontece próximo à Basílica. Vinte dias antes das procissões o Arraial é montado e após o recírio é desmontado. No entorno do Arraial acontecem shows religiosos, feiras de artefatos amazônicos, assim como em sua área existem brinquedos de diversão.
As ruas paralelas e perpendiculares não são interditadas, porém a fiscalização dentro e fora do parque continua como nos dias de procissão. Com isso, a ida até a Basílica e a participação nas atividades que por ali acontecem são mais contemplativas que as demais festividades pois, não há preocupação com horário, seja com início ou fim de algum movimento.
É notável a calma com que os eventos continuam a acontecer. Na terça-feira em que fiz a imersão no Arraial e no entorno do mesmo, perguntei ao técnico da mesa de som, o qual equaliza os instrumentos para o palco principal, qual seria o horário da próxima apresentação e se em todos os dias ocorrem em um mesmo horário. Sem ter uma certeza, o técnico confirmou que as apresentações acontecem por volta das oito horas da noite mais podem variar de horário.
Nesta tarde, já se passavam das seis da tarde e, no palco, não acontecia nenhum movimento, e ainda uma nuvem de chuva se aproximava. Fui caminhando em direção a Basílica de Nazaré e acompanhei o movimento dos devotos que se aproximam da grade onde a imagem da Santa é guardada neste período e amarram uma fita do Círio para que seu pedido seja realizado. São inúmeros pedidos feitos por meio desta grade que cerca o mostruário da Santa. É, contudo, um lugar de oferenda e fé, amplo e contemplativo, que nos eleva a alma e o espirito em louvor a Nossa Senhora de Nazaré.
Praça do CAN (Centro Arquitetônico de Nazaré. Fonte do autor. Data: 19/10/15. |
Durante a quinzena desta festividade, as atividades e oferendas mantem um espirito religioso da cidade. A devoção à Nossa Senhora se encerra visivelmente com o feriado do Recírio que ocorre quinze dias após o Círio. Porém, espiritualmente, a religiosidade prossegue entre os belenenses o ano inteiro, nas missas, nas memórias, na compaixão e no respeito ao próximo.
REFERÊNCIAS
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. RJ, Rocco, 1986.
DUBOIS, Padre Florencio. A devoção à virgem de Nazaré, em Belém do Pará. 2º edição, Revista e Augmentada, 1953.
LAPLANTINE, François. Uma Ruptura Metodológica: a prioridade dada à experiencia pessoal do “campo”, p. 149-151. IN: Aprender Antropologia. SP, Brasiliense, 2012.
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