terça-feira, 24 de novembro de 2015

Incursão na Travessa Dr. Moraes

Método para pesquisa

Esta incursão foi guiada pelo conceito da Etnografia de Rua das autoras Rocha e Eckert (2001) onde é sugerido a investigação antropológica através da coleta das dinâmicas das interações cotidianas e das representações sociais “na” e “da” cidade, anotando, observando e registrando-as através da “câmera de mão” (Rocha e Eckert, p.4, 2001).

Nesse sentido, de acordo com as autoras Rocha e Eckert (2001), esta incursão deve acompanhar o cotidiano com uma reflexão narrativa que encerra os deslocamentos humanos. Dessa forma, por nesta travessa haver o exemplo mais expressivo do período do ecletismo, o Palacete e a vila Bolonha, e alguns exemplares do estilo arquitetônico neocolonial, foi utilizado o texto da autora Marina Waisman (2013), “O interior da História” (Ed. Perspectiva, 2013), especificamente, o sexto capitulo da segunda parte do livro intitulado “Linguagem” (p.121-149), no qual a autora descreve como pode ser entendida a linguagem arquitetônica.

Ao iniciar o capitulo, a autora realiza uma pequena analise entre a linguística primitiva e a linguagem arquitetônica que, de acordo com Lévi-Strauss, em tribos primitivas, a utilização dos conceitos existentes para suprir novos desafios, frequentemente desenvolve modificação do sistema. Da mesma forma, na linguagem arquitetônica os elementos nascem através de um sistema motivado pela estrutura portante.

A decisão para o desenvolvimento de uma linguagem arquitetônica é relativa à um grupo de decisões ou mesmo de uma criação individual. Segundo Waisman, a linguagem arquitetônica ocidental, em grande parte, foi desenvolvida por grupos e indivíduos que interpretaram a realidade dentro de um período cultural.

Com isso, a autora coloca que há três formas de entender a linguagem arquitetônica: através da perspectiva morfológica, funcional e de seu referencial, ou seja, através de sua comunicação.

A perspectiva morfológica pode ser chamada por estrutural e a-estrutural. A primeira condiz com a estruturação do espaço, estabelecida através de uma ordem e divisão. A segunda é relativa a anulação das articulações do espaço, a destruição da organização racional. A autora descreve que a ideia de linguagem arquitetônica estrutural somente foi desenvolvida na Europa durante quase toda sua história.

A a-estrutural é a linguagem que representa a busca pelo modelo original, como as arquiteturas que tentaram resgatar a identidade nacional na América Latina, porém, ainda assim absorveram a mentalidade europeia. Deste ponto, a autora propõe um estudo da linguagem arquitetônica da América Latina através de pontos específicos, como coloca a autora:

“Podem distinguir-se diversos tipos de linguagem: aquelas que possuem um referencial histórico, as que têm referenciais naturalistas, ou referenciais tecnológico-construtivas, ou ainda aquelas que evitam qualquer referencial, aderindo a uma origem puramente geométrica ou abstrata. ” (Waisman, p, 128, 2013).

A análise da linguagem arquitetônica do ponto de vista funcional pode ser entendida como matéria do pensamento ou como instrumento de comunicação. Ambos se constroem em pontos congruentes. Por exemplo, quando um arquiteto tem a intenção de exercer seu raciocínio arquitetônico se torna necessário a comunicação da importância de suas ideias, à exemplo dos mestres da arquitetura moderna que buscaram uma linguagem “virgem de significados, de alusões e virgem também de convicções sintáticas estabelecidas” (Waisman, p. 134, 2013) e assim desenvolveram uma linguagem como instrumento do pensamento, contudo, para a comunicação destas arquiteturas, os conceitos formulados pelos mestres do movimento moderno foram abstraídos para comunica-las.

Dessa forma, a autora enfatiza que existem as arquiteturas do silencio, as quais são reduzidas pela pouca descrição da matéria. No lado oposto, a verborragia de uma autonomia da escrita pode separar o valor da arquitetura referencial do real. E de outra forma, existem as arquiteturas que são esquecidas pelo silêncio social. 

É nesse sentido que autora se encaminha para a conclusão do texto, tratando a linguagem arquitetônica através da arquitetura da palavra. Uma forma de proteger a arquitetura nos países da América Latina é através apropriação do conceito de regionalismo, ou seja, escrever sobre a arquitetura de maneira profunda ao seu referencial. O objetivo desta escrita é construir um discurso projetual, ou seja:

“Palavras que não falam se si mesmas, mas de matéria, de luz, de ar, da cidade com sua história e seu futuro e, no possível, falam também das pessoas que as habitam, que se habituam a viver ou conviver com elas”. (Waisman, p. 149, 2013).

Nesse sentido, a incursão visou perceber os detalhes que dão sentido a esta travessa, registrando com a utilização do caderno de anotações e da máquina fotográfica, instrumentos propostos pelas autoras Rocha e Eckert (2001), os quais deram conclusões a esta etapa junto ao esforço da descrição da linguagem arquitetônica. 

Incursão na Travessa Dr. Moraes

O percurso desta incursão teve início na Vila e no Palacete Bolonha e seguiu por três quadras até o cruzamento desta travessa com a avenida Gentil B., finalizando o percurso neste limite do bairro. 

Antes de iniciar esta etapa, intuitivamente, refleti que esta incursão seria um pequeno percurso com menos descrições que as demais ruas, travessas e avenidas. Após a leitura do texto da autora Waisman (2013) sobre a linguagem arquitetônica e a sua forma de descrição, a arquitetura da palavra, se tornou necessário um aprofundamento da questão.

Com isso, somente registrar os detalhes e entornos arquitetônicos, como tem sido realizado, não alcançaria esta concepção da autora. Nesse sentido, utilizei um caminho artístico para a reflexão. Estiquei e aparelhei uma tela, e nela fiz um estudo sobre a linguagem arquitetônica.

Quase incompreensível, esta tela me fez refletir dois períodos arquitetônicos que correspondem ao início e meados do século XX. Acredito que a unção dos dois períodos pode ser estudada através da unidade com que os elementos arquitetônicos foram utilizados para dar continuidade aos períodos.

Estudo sobre linguagem. Acrílica sobre tela. 110 x 90 cm.
Autor: Luciano Oliveira. Ano: 2015.

Com isso, recomecei a pensar sobre a travessa Dr. Moraes com o intuito de entender a clareza dos estilos arquitetônicos que estão presentes assim como a continuidade na qual se encontra.

No início desta incursão, na vila Bolonha, é possível perceber que a exuberância deste conjunto arquitetônico é a expressão de melhor tradução da cultura europeia em Belém. Como coloca Waisman (2013), esta linguagem arquitetônica pode ser entendida como a-estrutural por corresponder a um tipo de linguagem que buscou um referencial histórico europeu. 

Durante ciclo da borracha, o autor do projeto, Francisco Bolonha, construiu esta vila para ser sua residência e de sua família. Suas características representam o período do ecletismo como os ornamentos em relevo, a azulejaria do Art Nouveau e o uso de objetos pré-fabricados em ferro. Em uma imagem antiga é possível perceber que a vila Bolonha foi construída antes que o Palacete. O mesmo foi encomendado e montado em um terreno pré-definido, localizado no início do lote, como registrado na imagem abaixo:

Vila Bolonha. Fonte: Indicador Ilustrado do Estado do Pará, 1910.

A presença deste exemplar eclético no início desta travessa, o qual está localizado em uma posição central à perspectiva da via, transmite a ideia de que houve uma sucessão de construções arquitetônicas que tentaram compor uma continuidade histórica. Atualmente, este palacete foi restaurado e sua concepção arquitetônica foi preservada.  

Outros exemplares de Palacetes foram construídos nesta travessa os quais são antigos, porém com aspectos mais simplórios. A compreensão que pode ser feita sobre a arquitetura desta travessa, pelo menos até o cruzamento desta travessa com a avenida Nazaré, fica em torno de uma a articulação para a existência de uma unidade

Primeiro quarteirão da travessa Dr. Moraes. Fonte do autor. Data: 03/05/15. 

Na continuação do trajeto, entre as avenidas Nazaré e Braz de Aguiar, outro exemplar que comove a compreensão da unidade da via foi construído no estilo neocolonial com detalhes irreverentes. O edifício pertencente ao Crea, Conselho de Engenharia, localizado nesta esquina, corresponde ao período em que a identidade brasileira tentava recompor-se perante os estilos europeizantes.

Neste sentido, as aberturas, as colunas, os beirais e a projeção do edifício no terreno se tornaram elementos que foram adaptados do período colonial para organização da cultura brasileira em um novo período. Percebe-se a construção de um plano que corresponde a reformulação de uma perspectiva brasileira, mas também, especificamente este prédio, o intento de dar continuidade ao entorno existente.

Edifício do Crea. Fonte do autor. Data: 20/10/15.

Durante todo o percurso, percebe-se que diversas representações foram preservadas para a existência desta unidade. 

De outro ponto de vista, assim como esta travessa transmite um importante referencial arquitetônico da cidade de Belém, a mesma corresponde a um cenário de esquecimento e abandono.

Nos primeiros quarteirões, a inutilização de um Palacete antigo torna parte desta travessa esquecida e, em frente a este Palacete, um edifício com caraterísticas modernas passou por um incêndio e até então não foi restaurado.

É possível compreender a unidade que existe nesta travessa por diversos exemplos sem que com isso torne a travessa Dr. Moraes esquecida.



REFERÊNCIAS

Indicador Ilustrado do Estado do Pará. RJ: 1910.
ROCHA, Ana Luiza; ECKERT, Cornelia. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Iluminuras - Banco de Imagens e Efeitos Visuais, PPGAS/UFRGS, 2001, nº 44.
WAISMAN, Marina. O Interior da História. Historiografia Arquitetônica para uso de Latino Americanos. Ed. Perspectiva. SP, 2013.




Incursão na Avenida Governador José Malcher

Método para pesquisa


Esta incursão visou realizar o percurso na avenida Governador José Malcher através da Etnografia de Rua, conceito elabora pelas autoras Rocha e Eckert (2001), que tem como preocupação perceber os “paradigmas estéticos na interpretação das figurações da vida social na cidade” (Rocha e Eckert, p.5, 2001). Nesse sentido, foram utilizados os instrumentos sugeridos pelas autoras para a investigação antropológica: o bloco de anotações e a máquina fotográfica.

Para a reflexão desta pesquisa utilizei o texto do autor Roque de Barros Laraia, “Cultura: um conceito antropológico” (RJ: Jorge Zahar Editorial, 2001), no qual o autor descreve, na primeira parte do livro, as primeiras concepções sobre o conceito de cultura, a evolução da teoria deste conceito durante os séculos XVII, XVIII, XIX, e as tendências atuais.

Na segunda parte do livro, o autor propõe uma análise prática sobre todo passado do conceito para refletir que a cultura “é como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (Benedict apud Laraia, p.67, 2001). 

Este entendimento sobre o conceito de cultura é concebido pelo autor através da ideia de que cada sistema tem uma lógica cultural. Nesse sentido, o estudo de uma cultura com mais lógica que outra não significa que exista uma cultura inferior, mas que uma determinada cultura somente pode ser analisada e classificada por pesquisadores a partir do sistema a que pertence. A lógica de um sistema cultural corresponde aos princípios de raciocínios e juízos explícitos nos hábitos conscientes e inconscientes. 

Com isso, Laraia reflete que a cultura é dinâmica e que:

“Qualquer sistema está num continuo processo de modificação (...) a mudança que é incutada pelo contato não representa um salto de um estado estático para um dinâmico, mas antes a passagem de uma espécie de mudança para outra. ” (Laraia, p.96, 2001).

Então, buscar através do conceito de cultura desenvolvido pelo autor Laraia a lógica e a dinâmica cultural da avenida Governador José Malcher pode retomar a importância desta via que, devido a existência de uma grande quantidade de edificações antigas do bairro de Nazaré, entre as quais somam-se boas representações do estilo Ecletismo, Neoclassicismo, Neocolonial, Moderno e Pós-Moderno, corresponde a uma das mais bonitas partes da cidade.

Por este percurso ser a última incursão por avenidas do bairro, todas as demais já percorridas, retirei um epilogo do livro do autor Ítalo Calvino “ As cidades invisíveis” (Companhia das Letras, 1990), no qual Marco Polo, viajante veneziano, e o Imperador Mongol, Kublai Khan, dialogam um sonho sobre a cidade de Lalage:

“Da alta balaustrada do palácio real, o Grande Khan observa o crescimento do império. Primeiro, as fronteiras haviam se dilatado englobando os territórios conquistados, mas o avanço dos regimentos encontrava regiões semidesertas, combalidas aldeias de cabanas, aguaçais em que o arroz crescia mal, populações magras, rios secos, miséria. “É hora de o meu império, crescido demais em direção ao exterior”, pensava Khan, “começar a crescer para o interior”, e sonhava bosques de romãs maduras com as cascas partidas, zebus assados no espeto gotejando gorduras, veias metalíferas que manam desmoronamentos de pepitas cintilantes. 
Agora, muitas estações abundantes abarrotaram os celeiros. A cheia dos rios arrastou florestas de traves destinadas a sustentar tetos de bronze de templos e palácios. Caravanas de escravos deslocaram montanhas de mármore serpentino através do continente. O Grande Khan contempla um império recoberto de cidades que pesam sobre o solo e sobre os homens, apinhando de riquezas e de obstruções, sobrecarregado de ornamentos e incumbência, complicado por mecanismos e hierarquia, inchado, rijo, denso. 
“É o seu próprio peso que está esmagando o império”, pensa Kublai, e em seus sonhos agora aparecem cidades leves como pipas, cidades esburacadas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros, cidades-fibra-de-folha, cidades-linha-da-mão, cidades-filigrana que se veem através de sua espessura opaca e fictícia. 
- Conto o que sonhei esta noite – disse Marco. – Em meio a uma terra plana e amarela, salpicada de meteoritos e massas erráticas, vi erguer-se a distância as extremidades de uma cidade de pináculos tênues, feitas de modo que a lua em sua viagem possa pousar ora num pináculo ora noutro ou oscilar pendurada nos cabos dos guindastes. 
E Polo: 
-A cidade que você sonhou foi Lalage. Os habitantes dispuseram esses convites a uma parada no céu noturno para que a lua permita a cada coisa da cidade crescer e recrescer indefinidamente. 
- Há algo que você não sabe – acrescentou o Khan. – Agradecida, a lua concedeu à cidade da Lalage um privilegio ainda mais raro: crescer com leveza. ” 
(Calvino, p. 69-70, 1990).  

Este epilogo coloca uma das maravilhas de certas cidades que valorizam a permissão do céu. Este trecho do livro do autor Calvino traduz uma questão sobre a cidade de Belém. O bairro de Nazaré tem sua origem no mito do encontro da imagem de Nossa Senhora de Nazaré. A construção e desenvolvimento do bairro se deu séculos após este encontro com a ascensão do ciclo da borracha. 

O que de fato existe quanto cultura material e imaterial no bairro de Nazaré representa estes dois momentos: a devoção a Nossa Senhora de Nazaré e a permissão do céu para construir um templo e uma sociedade na qual concebesse sua graça.

É possível perceber que a avenida Governador José Malcher transparece a leveza com a qual o bairro de Nazaré cresceu assim como é uma evidência de uma cidade que foi sonhada, ou como constrói Ítalo Calvino, uma cidade invisível.

Nesse sentido, um estudo sobre o livro do autor Calvino foi realizado por Canevacci (2004), em seu livro “A Cidade Polifônica” (Studio Nobel, 2004). Segundo Canevacci, o livro de Ítalo Calvino, “As cidades invisíveis”, foi pensado dentro de uma forma literária que mistura tanto elementos arquitetônicos quanto imaginários, o qual se aproxima de uma forma musical ou de um teorema que permite uma equação indemonstrável e verdadeira. 

Canevacci coloca que as cidades invisíveis que Calvino constrói nesta forma literária extraordinária “parecem ter um único rosto; e, no entanto, são infinitas. Constituem um cânone, uma fuga. Mas também um desenho, uma escultura. ” (Canevacci, p.127, 2004).

De acordo com Canevacci, as descrições das cidades invisíveis são feitas em um estilo literário que as entrecruzam em uma sequência sincrônica, mas que também a estrutura completa do livro se torna perspectiva, matemática e música. Contudo, se a compararmos a estas estruturas seria uma música invisível ou um enunciado indemonstrável, pois, segundo o autor, “as formas “invisíveis” das cidades são contextos dentro do qual se produz o pensamento abstrato. Analogias. ” (Canevacci, p. 130, 2004).

Como já descrito antes, a cidade de Belém se aproxima em parte de uma cidade com forma de invisibilidade ou mesmo na forma de uma música ou de um enunciado que, se interpretado por meio desta dissolvência, abstração, ou num máximo distanciamento de conceitos, se torna invisível. 

Assim, reconhecer a lógica e a dinâmica cultural desta avenida através de sua descrição interpretativa pode nos fazer ter uma das melhores imagens do bairro de Nazaré e, com isso, a possibilidade de um destino à salvaguarda de sua paisagem cultural.

Nesse sentido, o percurso foi dividido em três partes. A primeira corresponde aos dois primeiros quarteirões da avenida pertencentes ao bairro de Nazaré no sentido dos automóveis, ou seja, entre as avenidas Alcindo Cacela e a Generalíssimo D., a segunda parte são quatro quarteirões que correspondem ao percurso nesta avenida entra a avenida Generalíssimo D e a travessa Dr. Moraes e a terceira parte, a qual finaliza o percurso, entre a Travessa Dr. Moraes até a avenida Assis de Vasconcelos.

Esta divisão em três partes da incursão tem como intuito atribuir características segmentadas a cada um destes trechos, tendo em vista o extenso universo arquitetônico, para assim elaborar considerações sobre a dinâmica cultural desta avenida e do bairro de Nazaré. 

Primeiro Trecho: Incursão na Av. Governador José Malcher entre as Avenidas Alcindo Cacela e Generalíssimo Deodoro


Este primeiro trecho foi iniciado no cruzamento com a avenida Alcindo Cacela onde a avenida Governador José Malcher muda um pouco direção e se torna paralela às demais vias do bairro de Nazaré. Esta mudança de direção somente pode ser percebida no início deste percurso, na observação deste primeiro cruzamento no limite do bairro de Nazaré.

Início do percurso. Fonte do autor. Data: 20/10/15.

Neste primeiro trecho, as arquiteturas antigas em grande parte foram esquecidas. Estas não são exemplares irreverentes como as do segundo trecho, porém foram construídas de acordo com o padrão da época. 

Dentro da dinâmica desta parte da Avenida Governador José Malcher, o movimento de pessoas pela parte da manhã é forte nas paradas de ônibus, nos semáforos, nos cruzamentos e nos locais de comércio e serviços.

O ápice deste movimento acontece entre a parada de ônibus ao lado da Assembleia de Deus e o cruzamento com a travessa 14 de março, onde pessoas descem dos veículos coletivos e aguardam o semáforo para seguirem com a caminhada.

Parada de ônibus ao lado da Assembleia de Deus.
Fonte do autor. Data: 20/10/15.

Uma questão que pode ser observada é quanto a utilização das arquiteturas antigas para fins comerciais. Neste primeiro trecho, por não haver um Palacete com destaque nem uma restauração criteriosa, uma forma de descrever o que acontece no cotidiano entorno destas arquiteturas é a forma com que são utilizadas.

Próximo ao cruzamento com a avenida Generalíssimo, uma edificação neoclássica se encontra abandonada. Aparentemente é um ponto de estacionamento no qual os carros passam por debaixo da habitação ou pela abertura que foi feita no porão da edificação para a parte posterior do terreno, com isso, percebi que este espaço não guarda somente automóveis, mas também carrinhos de lanches, de brinquedos, e de suvenir os quais são fontes para serviços menores. É possível compreender que a falta de um uso arquitetônico adequado corresponde ao pensamento de poder usufruir o edifício de qualquer forma.

Edificação Neoclássica utilizada como estacionamento.
Fonte do autor. Data: 20/10/15.

A comparação dos prédios desta parte com os do segundo trecho é impressionante. Se nesta primeira parte, as arquiteturas ganham menos observação que o movimento cotidiano de pessoas, na continuação do percurso, os palacetes e edificações são atrações contemplativas da avenida.


Segundo Trecho: Incursão na Av. Governador José Malcher entre a Av. Generalíssimo Deodoro e a Tv. Dr. Moraes

O segundo trecho se inicia no cruzamento com a avenida Generalíssimo Deodoro, onde a imagem da Av. Governador José Malcher, percebida até então, começa a mudar. Nesta primeira esquina, como já descrito em outras incursões, foi construído o Palacete no início do século XX para ser a residência do Governador do Estado.

Este palacete eclético, construído de acordo com as leis estéticas arquitetônicas do ciclo da borracha, se tornou um exemplar a ser seguido por todas construções da época. Nesse sentido, de acordo com Bassalo (2008):

“Nas edificações da belle époque tropical observa-se com frequência a ornamentação no estilo art nouveau. Muitas dessas construções têm a fachada no alinhamento frontal do terreno, com a entrada lateral, na qual normalmente há uma sacada com gradis de ferro e janelas art nouveau. Exibem a platibanda com elementos vazados, a maioria geométricos, dispensando o uso clássico da tradicional platibanda com balaústres. (...)Relevante, também, é o emprego do vidro nas fachadas, incluindo-se os vidros coloridos em recortes geométricos e ornamentos simples. Há casos, no entanto, em que as portas e janelas apresentam na ornamentação dos vidros desenhos orgânicos, alguns lembrando as propostas do novo estilo decorativo. ” (Bassalo, p. 83-85, 2008).

Os detalhes arquitetônicos deste edifício correspondem desde ladrilhos e vidraças com desenhos Art Nouveau até elementos pré-fabricados em ferro como os gradil, estátuas, postes e luminárias. Hoje, este edifício pertence ao museu da Universidade Federal do Pará.

Ao lado do Palacete Augusto Montenegro, outro palacete foi construído também com características que obedeciam às leis vigentes do período. Este outro, mais simplório que o Museu da Ufpa, pertence a uma instituição de ensino a qual o reformou de acordo com a necessidade do uso. 

O dia-a-dia deste edifício é movimentado por alunos e professores que entram e saem dentro do horário de aula. Assim, pela manhã e pela tarde a fachada deste edifício é preenchida por pessoas que se sentam na grade do entorno, que conversam ou que aguardam em um carrinho de lanches ou na banca de revista em frente ao edifício.

Calçada em frente ao Iesan. Fonte do autor. Data: 20/10/15.

Neste trecho da Av. Governador José Malcher, por haver uma grande quantidade de edificações que ainda guardam algumas características deste período, é normal perceber que de tempos em tempos a cor de uma fachada mudou, ou que uma reforma foi feita, ou que o edifício ganhou um novo uso, etc.
Uma das formas de acompanhar estas transições arquitetônicas seria a preservação da paisagem cultural do bairro de Nazaré como patrimônio material e imaterial. Porém, este compromisso pode atrasar os investimentos econômicos que acontecem esporadicamente. Daí a interpretação de alguns autores sobre a paisagem cultural através de uma visão econômica. 

Nesse sentido, ao passar por um chalé antigo, com características ecléticas do período da belle époque, registrei o momento em que o mesmo recebia uma nova cor para corresponder a cor da empresa que irá o ocupar. Conclui-se que a preservação da paisagem não livrará os edifícios antigos de novas intervenções.

Chalé antigo sendo reformado.
Fonte do autor. Data: 20/10/15

Contudo, ainda assim, dar um uso a um edifício é uma forma de o tornar vivo. O contraste disto é a falta de uso. Por exemplo, uma edificação construída também no início do século XX encontra-se abandonada. Este Palacete conhecido como Palacete Bibi, construído por Francisco Bolonha, tem características ecléticas e detalhes rebuscados em ferro como o gradil e as estátuas, as aberturas e as coberturas.

É um exemplo belo de construção da belle époque devido a sua localização no cruzamento da avenida Governador José Malcher com a passagem Joaquim Nabuco, o que transparece a grandeza e a beleza de suas fachadas. Além da perspectiva, a composição de suas cores realça um aspecto característico de castelos europeus. 

Palacete Bibi. Fonte do autor. Data: 20/10/15. 

Nesta avenida, existem exemplares arquitetônicos que demonstram como é importante e possível realizar uma restauração criteriosa, dar um uso adequado e adaptar o edifício ao entorno.

No cruzamento desta avenida com a avenida Alm. Wandenkolk, um palacete antigo, construído no início do século XX, semelhante ao Palacete ao lado do Museu da Ufpa, foi restaurado de modo consciencioso, onde se torna possível o entendimento da valorização da instancia estética.  

A restauração fez com os ornamentos do edifício ficassem suavizados e transparentes enquanto que os refazimentos de outrora esquecidos, tonaram-se percebidos. De certo, a restauração manteve a clareza arquitetônica deste edifício para nele funcionar uma agência bancária.  

Seguindo nesta mesma quadra da avenida, um outro edifício, localizado próximo a travessa Quintino Bocaiuva, com apenas um pavimento e com características do período do ecletismo, recebeu um uso adequado, o qual pouco interveio na parte física do edifício. Acredito que esta é uma boa alternativa para a utilização um de edifício antigo.

Edificação eclética onde são realizados cultos messiânicos.
Fonte do autor. Data: 20/10/15. 

Seguindo o trajeto, entre as travessas Benjamin Constant e a Dr. Moraes, um Edifício Eclético, também construído no início do século XX, faz parte de um entorno contemporâneo. Pode-se ver através da imagem abaixo que a urbanização desta área como os cabos elétricos, o asfaltamento, as calçadas para cadeirantes, tornaram esta quadra um lugar de passagem de pessoas com comércio e serviço, e um corredor de trânsito.

Quadra entre as travessas Benjamin Constant e Dr. Moraes.
 Fonte do autor. Data: 20/10/15. 

Nestas condições contemporâneas, as edificações antigas se destacam pois são como uma possibilidade para o reconhecimento da origem e da história do bairro de Nazaré. Entre as demais construções, em grande quantidade existem edifícios verticais, edifícios modernos e pós-modernos, assim como uma variedade de habitações antigas neoclássicas e ecléticas com aquele aspecto do tempo nas fachadas conhecido como pátina.

Os exemplos explorados nesta incursão visaram buscar uma expressão da avenida Governador José Malcher. Ao mesmo tempo, esta grande tarefa é um desfecho para dar uma possibilidade para o todo.   

Terceiro Trecho: Incursão na Av. Governador José Malcher entre a Tv. Dr.  Moraes e a Av. Assis de Vasconcelos

Finalizando o percurso, o último trecho se inicia no cruzamento com a travessa Dr. Moraes onde está localizado um dos melhores exemplares arquitetônicos do período do ecletismo, o Palacete Bolonha. Segundo Derenji (2009), este palacete foi construído pelo engenheiro Francisco Bolonha, autor e proprietário do projeto, o qual era empresário e “concessionário de prédios públicos de grande porte, como os mercados, e de quiosques de vendas” (Derenji, p. 207, 2009). 

A autora descreve que os projetos do engenheiro Bolonha eram elaborados através de práticas inovadoras, onde o engenheiro projetava a linguagem do ecletismo para tornar seus prédios emblemáticos em cada cidade.

Este palacete localizado neste trecho da incursão é uma das melhores representações arquitetônicas da belle époque reconhecido como “castelo de sonho” (Derenji, p. 209, 2009) e de acordo com Derenji:

“A residência de Bolonha foi projetada para uso de um casal, distribuindo-se em três pavimentos e um mirante. Tem múltiplas divisões internas e decoração carregada em dourados e estuques – estes de autoria do maranhense Newton de Sá –, azulejos decorados, mosaicos e revestimentos variados. A decoração utiliza reproduções de mosaicos de Pompéia, relevos com temática greco-romana, azulejos art nouveau, pisos em vidro e, no exterior, telhas em ardósia colorida, com detalhes de acabamento em ferro para o telhado em mansarda com torreão. Dispondo de um grande terreno, Bolonha criou uma rua particular (hoje de circulação pública), onde distribuiu as casas que compunham o conjunto, dispondo sua própria casa numa solução em altura. O prédio se volta para o interior, sem jardins, sem grandes aberturas, deixando a vista e os benefícios da ventilação apenas para a torre. Um dos engenheiros mais conhecidos da cidade no início do século XX, Bolonha construiu para si próprio uma residência rica, de abundante decoração e pouca praticidade. Teve função residencial por alguns anos depois da morte do proprietário, no início do século XX, e depois passou ao poder público. Ficou vários anos sem utilização perdendo, pelo abandono, muitos detalhes e elementos decorativos. Atualmente está restaurada e abriga um centro de atendimento a idosos. ” (Derenji, p. 209-210, 2009).

Após este Palacete, a avenida Governador José Malcher se torna uma via com um traçado urbano orgânico com uma leve inclinação até a avenida Assis de Vasconcelos, composta por algumas edificações modificadas e outras novas.

A paisagem deste final de percurso cria a imaginação de que este trajeto percorrido poderia ser mais uma cidade no mapa, porém, ao percorre-lo o transeunte percebe que existem edificações semelhantes à castelos com um desfecho semelhante a uma rota de saída medieval, estreita e orgânica. Esta perspectiva final deste trecho nos sugere a compreensão de uma avenida utópica e imaginária. 

Talvez, a forma de compreender a incursão nesta avenida e as incursões no bairro de Nazaré seja imaginando-as em uma cidade invisível, devido a celebração e consentimento do mito de origem do bairro de Nazaré e a forma com que a cidade foi expandida e conservada.

Assim, cabe ao pesquisador saber posicionar-se para a observação dos momentos de expressões deste sistema-cultural tanto ao nível individual quanto coletivo. Perceber a diversidade produzida por esta estrutura de um ponto de vista etnográfico, estético e imaginário pode alcançar alguma satisfação do próprio meio e, com isso, gerar um incentivo a preservação.

Última quadra da avenida Governador José Malcher.
Fonte do autor. Data: 20/10/15.



REFERÊNCIAS

BASSALO, Célia Coelho. Art Nouveau em Belém. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2008.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Companhia das Letras, 1990, 1º edição.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2ª ed. SP, Studio Nobel, 2004.
DERENJI, Jussara. Igrejas, Palácios e Palacetes. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2009.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
ROCHA, Ana Luiza; ECKERT, Cornelia. Etnografia de rua : estudo de antropologia urbana. Iluminuras – Banco de Imagens e Efeitos Visuais, PPGAS/UFRGS, 2001.n° 44.

Imersões nas Procissões e Entornos da Trasladação e do Círio de Nazaré

Método de Pesquisa


Esta etapa da pesquisa foi realizada através de imersões no campo de estudo de acordo com o que o autor Laplantine (2012) observa:

“A etnografia é antes a experiencia de uma imersão total, consistindo em uma verdadeira aculturação invertida, na qual, longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifestações ‘exteriores” (Durkheim), devo interioriza-la nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos” (Laplantine, p. 150, 2012).

Dessa forma, por se tratar de uma das maiores procissões católicas do Brasil e do Mundo, celebrada a mais de dois séculos e declarada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, busquei realizar esta pesquisa analisando as procissões através do texto do autor Roberto DaMatta “O que faz do brasil, Brasil? ” (RJ, Rocco, 1986), especificamente o capitulo “Os Caminhos para Deus...” (p.109-121), no qual o autor trata da diversidade religiosa brasileira de vários pontos de vista.

Ao iniciar o capitulo “Os caminhos para Deus”, o autor DaMatta diferencia o espaço habitual do indivíduo, como a casa, a rua, o trabalho e o espaço do “outro mundo”, o da religião, no qual o indivíduo se encontra com Deus. Neste espaço, a linguagem é outra, como coloca o autor:

“Em vez de discursar, rezamos; em vez de ordenar, pedimos, em vez de simplesmente falar, como fazemos habitualmente, conjugamos a forma da mensagem com seu conteúdo, suplicamos” (DaMatta, p. 111-112, 1986).

No sentido coletivo, este espaço se manifesta através de cantorias em conjunto para que as preces subam para o alto, para que passem do plano em que vivemos para o plano superior. Assim, as preces coletivas são mais fortes enquanto que as preces individuais são mais fracas por serem justamente individuais.

Com isso, o autor questiona “Por que se fala com Deus? ” (DaMatta, p. 113, 1986). Em diferentes pontos de vista, DaMatta descreve que a religião pode ser uma ajuda às possibilidades de construir a comunhão do universo, pode ser uma explicação ao que o indivíduo não consegue explicar como o sofrimento, doença, aflição, injuria, etc., assim como pode ser um modo de ordenar as ideias mais complexas como o tempo, o eterno, a perda e o desaparecimento, os mistérios da existência humana.

Surge uma outra questão: “Como se chega a Deus no Brasil? ” (DaMatta, p. 115, 1986). Segundo DaMatta, até 1890 o Brasil tinha como dominação religiosa o Catolicismo Romano que foi complementado por várias religiões com denominações Protestantes e outras variedades de religiões Ocidentais e Orientais.

De acordo com o autor, a experiencia religiosa brasileira é ampla e limitada pois, existem diferentes religiões possíveis de conhecer, porém cada qual tem sua linguagem e sabedoria sobre morte, o tempo e existência humana. Dessa forma, são complementares entre si, o que dá ao brasileiro mais proteção e profundidade religiosa.

Para resolver a questão e concluir o capitulo, DaMatta coloca que devido a esta complementariedade entre as religiões, os sentimentos e emoções são visíveis e concretos. A religião no Brasil busca uma forma de reciprocidade para com todos, buscando “o meio-termo, o meio caminho, a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna” (DaMatta, p. 120, 1986), e esta esperança, segundo o autor, existe nas formas mais populares de religiosidade.

Com este intuito, as imersões durante as procissões visaram registrar alguns momentos semelhantes às observações do autor DaMatta como a prece coletiva, a religião como ajuda, explicação e satisfação, para assim, através da descrição das situações mais expressivas, entender a grandeza destas procissões.


Um pouco do passado e do presente das Procissões

Há dois séculos, durante o segundo domingo de outubro, é realizado o Círio de Nazaré. Esta procissão teve origem no mito do caboclo Plácido que, em certo dia, encontrou a imagem da Virgem de Nazaré em um córrego próximo à estrada do Utinga ou estrada do Maranhão e levou-a para sua casa. No dia seguinte, a imagem havia desaparecido e ressurgido no mesmo local. A partir deste milagre, Plácido construiu uma ermida no local do reaparecimento da imagem o qual passou a ser frequentado por fieis que deram início a peregrinação do Círio de Nazaré realizando o traslado da cidade até a ermida.

Segundo Dubois (1953), o Círio de Nazaré no Pará remonta a história da imagem de N.sa S.ra de Nazaré em Portugal. Para esta compreensão, retirei dois trechos do livro do autor Dubois. No primeiro, a história da imagem de N.sa S.ra de Nazaré em Portugal resumida pelo autor e, no segundo, as conexões entre as duas terras:

“Consta da Monarquia Luzitana, do mesmo frei Bernardo de Brito (2º parte, fl. 391) e se acha conforme às tradições antigas, ser esta sacrossanta Imagem da Virgem de Nazaré, obrada pelas mãos de José, na própria presença da Mãe de Deus, e encarada por São Lucas; e que de Nazaré a trouxeram Ciríaco, monge, a Santo Agostinho à África, sendo bispo de Hipona, e d´aí este santo bispo a enviou ao mosteiro Cauliniano do qual a Trouxe Romano, na companhia de el-Rei Dom Rodrigo, último dos godos, até aquele monte de São Bartolomeu, até então monte de Sião, onde acharam aquele milagroso crucifixo que está na sacristia, e, d´aí a dias, para este lugar, em que ficou debaixo de terra os ditos 469 anos, em que apareceu ao tal cavaleiro D. Fuas, no dito ano de 1182. (...) O devoto que o letreiro traduziu pede uma ave Maria a esta Senhora de Nazaré... Ano de 1623” (Dubois, p. 29-30, 1953).

Segundo Dubois, entre a tradição Portuguesa e a Paraense não faltam conexões, como coloca o autor:

“A devoção a Nossa Senhora de Nazaré veio de Portugal em linha reta, trazida pelos jesuítas portugueses.A imagem é portuguesa.O Círio foi ideado por um luso, dom Francisco de Souza Coutinho.O milagre de Dom Fuas Roupinho é episódio português.O uso de velas e de artefatos de cera nos chegou do reino.A festa, vinda de Portugal, é comparável aos lusos que, integrados no Pará, acabam sendo mais paraenses do que lusos. Embora originaria de Portugal, mas com bases históricas aqui, a devoção nazarena foi de tal forma aclimatada entre nós, que se tornou especificamente amazonense. ” (Dubois, p. 41, 1971).

De certa forma, com o passar dos anos, o Círio de Nazaré foi sendo adaptado ao clima amazônico sempre buscando corresponder à tradição portuguesa. 

A primeira procissão ocorreu em 1793 e teve como incentivo a realização da Feira Agrícola, a qual reuniu os habitantes das cidades do interior do Estado então promovida pelo Presidente da Província do Pará: capitão-mor D. Francisco de Souza Coutinho. 

Desde a primeira procissão, a imagem de N.sa S.ra sai do santuário um dia antes do Círio. Nos primeiros anos, à destino da casa do Governador para de lá percorrer a estrada do Utinga até a ermida. Em 1887, a imagem teve sua saída do Colégio Amparo. A partir de 1988, a imagem tem sua saia do Colégio Gentil, antigo colégio Amparo, de onde percorre o mesmo trajeto do Círio no sentido inverso.

Outros traslados e romarias foram criados ao longo dos anos. Há atualmente um total de dois traslados, a Trasladação descrita acima e o traslado para Ananindeua realizado desde 1997 na sexta-feira que antecede o Círio, saindo da Basílica às 14 horas para a igreja Matriz de Ananindeua com participação da Polícia Rodoviária Federal.

Há três romarias que antecedem o Círio de Nazaré: A Romaria Rodoviária, realizada desde 1989 no sábado que antecede o Círio, às 6:00 horas, que acompanha a berlinda da Igreja Matriz de Ananindeua até Icoaraci; a Romaria Fluvial a qual realiza, desde 1986, o percurso do Porto de Icoaraci até o Cais do Porto, com chegada às 9:00 horas e a Romaria dos Motoqueiros que acompanha a Virgem de Nazaré do Cais do Porto até o Colégio Gentil desde 1990.

Em 2004, o Círio de Nazaré foi inscrito no livro das Celebrações do Iphan. Em 2013, a procissão foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco.

Para compreender o Círio de Nazaré no Pará, o autor Moreira (1971) realizou uma análise geo-social, na qual o Círio é visto como “a culminação de uma transumância (...) o clímax de uma migração periódica de fundo religioso (...) No plano da Geografia Humana, é o fenômeno de maior expressão dinâmica na paisagem amazônica” (Moreira, p. 5, 1971).

Segundo o autor, a procissão do Círio exerce uma atração própria que explica a chegada dos promesseiros pela manhã e retorno ao lugar de origem no mesmo dia da procissão. Para comparar este aspecto impressionante, o autor coloca que “o Círio é a correspondência humana da pororoca” (Moreira, p. 6, 1971).

Outros duas tônicas ou aspetos são levantados pelo autor: a presença nativa e a portuguesa. De acordo com Moreira:

“Pela gente, pelo colorido, pelo sentimento e pela movimentação o Círio é paraense, mas como forma de culto e cerimonial de rua é português, devendo-se notar que o fundo nativo se moldou perfeitamente à empreinte lusitana. ” (Moreira, p. 9, 1971).

Com isso, o autor coloca problemas e perspectivas que podem aprimorar a compreensão sobre esta procissão. Entre estas estão: a pesquisa sobre as lendas entorno da imagem, a condição humilde e popular de seus primeiros possuidores, o percurso histórico no Pará e as motivações e oportunidades que esta procissão incentiva à região.

Este destaque que deve ser dado ao Círio é reconhecido devido à sua ação motivadora própria, às migrações periódicas de fundo religioso, aos aspectos formais tanto lusitanos quanto nativo, entre outros aspectos. A pesquisa científica destes aspectos pode dar possibilidade de ampliar a projeção de Belém no plano nacional e internacional e, com isso, haverá o aumento de pesquisas científicas.

O reconhecimento do Círio de Nazaré como Patrimônio Cultural da Humanidade fortalece o que o autor Moreira descreve quanto a ampliação da projeção de Belém e, com isso, é acreditável que se tenha mais desenvolvimento cientifico.


Imersão na Procissão da Trasladação

Na tarde do sábado que antecede o Círio de Nazaré, mais ou menos a partir das 17:00 horas, se inicia a procissão da Trasladação. O percurso é realizado desde a primeira procissão. Como contam historiadores, nos primeiros anos, a imagem da Virgem de Nazaré saia para a casa do Governador. Este ato foi repetido em todos os anos até 1887, de onde a imagem passou a sair do colégio Amparo, atual colégio Gentil.

Atualmente, durante o ano inteiro a imagem é guardada no Colégio Gentil Bittencourt e nas vésperas do Círio percorre o traslado para Ananindeua, na sexta-feira que antecede o Círio, de lá é acompanhada pela Romaria dos Rodoviários, no sábado, às 6:00 horas, até o Distrito de Icoaraci, segue em Romaria Fluvial de Icoaraci até o Cais do Porto em Belém, de onde é acompanhada pela Romaria dos Motoqueiros até o Colégio Gentil B., de onde inicia a Trasladação.

A Trasladação na tarde que antecede o Círio é diferente das demais romarias e traslados que foram criados no século XX. Esta procissão, além de ter sido criada na primeira procissão do Círio, comove fiéis noite afora que acompanham a imagem da Virgem de Nazaré até a Igreja da Sé.

Realizei esta imersão partindo da avenida Magalhães Barata em direção ao colégio Gentil, de onde acompanhei a missa de abertura e andei próximo à berlinda até a Basílica de Nazaré. Deste ponto, acompanhei a Trasladação contornando as quadras ao redor, na Avenida Gentil Bittencourt entre alameda Lúcio Amaral e a travessa 14 de março e na Avenida Governador José Malcher, entre a travessa 14 de março e Avenida Generalíssimo D., observando o traslado e seu entorno.

O primeiro momento da Trasladação acontece em frente ao Colégio Gentil B., onde é rezada uma missa para iniciar o traslado. É notável perceber que a missa de abertura da Trasladação é feita por um orador num alto falante e, durante este momento, inúmeras pessoas se aproximam de todos os lados para contemplar a missa.

Aproximação dos fieis para a missa de abertura.
Fonte do autor. Data: 10/10/15. 

Após a celebração da missa, a imagem entra na berlinda, em cima de um automóvel e segue entre as cordas e os promesseiros que cantam músicas e cantigas em conjunto. Neste primeiro momento do percurso, entre a saída da imagem da Virgem de Nazaré do Colégio Gentil até a frente da Basílica Santuário de Nazaré, a procissão ainda está iniciando o andamento.

Como coloca DaMatta (1986), a prece individual se torna mais fraca comparada a reza coletiva, com isso, o uso de objetos, santos, colares e blusas demonstra ao indivíduo e ao grupo que a prece é forte e que a devoção será realizada. Muitos vendedores de suvenires religiosos percorrem o traslado com objetos de devoção. Num caso especifico, um vendedor de terços de madeira fazia uma oferta de “três por dez” durante a cantiga dos fiéis.

Vendedor de terços. Fonte do autor. Data: 10/10/15

Outro momento notável desta procissão é a passagem da Virgem de Nazaré em frente a Basílica. Neste momento, acontece uma queima de fogos e as primeiras orações coletivas. Neste trecho, uma grande quantidade de pessoas levanta as mãos em direção berlinda o que demonstra a descrição feita por DaMatta.

Passagem da Imagem de Nazaré em frente a Basílica.
 Fonte do autor. Data:10/10/15.

Este momento de fé pode ter como motivação a ajuda de Deus, a explicação para as coisas que não se entende ou uma satisfação. Acredito, concordando com o autor DaMatta, que a religião é um meio de comunhão do universo e quando isto é visto, a comoção é inevitável.

Logo após a passagem da imagem, como coloca o autor Moreira (1971), existe a migração dos fiéis para seus lugares de origem. Este retorno acontece durante todo o percurso após a saudação da imagem. Nesse sentido, registrei o momento deste retorno em frente à Basílica.

Momento após a passagem da Imagem em frente à Basílica.
Fonte do autor. Data: 10/10/15.


Imersão no Entorno da Trasladação

 Entorno da Procissão da Trasladação na alameda Lúcio Amaral.
Fonte do autor. Data: 10/10/15. 

Na tarde do sábado que antecede o Círio de Nazaré, durante a procissão da Trasladação, as ruas perpendiculares à avenida Nazaré, a partir do limite do bairro de Nazaré com o bairro de São Braz até as ruas da cidade Velha, são interditadas e preenchidas por vendedores de comidas regionais e suvenires, por cadeiras que reúnem familiares em frente a suas casas, por pessoas que transitam entre a passagem da imagem de N.sa Sra e seu veículo de transporte.   

O entorno da trasladação também corresponde a movimentação de pessoas que buscam acompanhar a imagem da Santa sem estar no meio da procissão. Esta devoção é ressentida nas cerimonias familiares localizadas nas vilas e ruas paralelas, as quais oferecem um momento de fé por meio de uma cantiga e, se necessário, a oportunidade de se recompor fisiologicamente.
O trânsito de veículos da cidade se torna fiscalizado pelo Detran durante toda esta procissão. O congestionamento de carros e ônibus nas ruas paralelas, como na avenida Governador José Malcher, faz com que os devotos caminhem por mais uma ou duas quadras para então seguirem viagem.
  
Como registrado na imagem acima, existe uma grande quantidade de pessoas que passam pelo entorno com a intenção de acompanhar a festividade observando-a em seu redor.
Nesse sentido, este espetáculo promove à cidade um grande palco de reencontro com sua fé e identidade.


Imersão na Procissão do Círio de Nazaré

Da mesma forma em que acontece a procissão da Trasladação, onde as pessoas se aproximam, cantam, realizam a saudação e retornam para suas casas, o Círio de Nazaré acontece pela manhã do domingo. As primeiras procissões do Círio eram realizadas pela tarde do segundo domingo de outubro. Devido à chuva torrencial que acontece frequentemente no céu amazônico, a procissão passou a acontecer no horário matutino.

Com isso, durante toda a manhã deste domingo, promesseiros, vendedores e todas as emissoras de televisão, rádios e internet locais participam da celebração. A cidade de Belém se torna palco desde evento que, segundo Moreira, “é o fenômeno de maior expressão dinâmica na paisagem amazônica” (Moreira, p.5, 1971).

Esta imersão no Círio acompanhou o momento da chegada da imagem de Nossa Senhora na Basílica e de sua missa de Celebração, assim como o final da celebração e seu entorno. 

A primeira impressão desta transumância ou “migração periódica de fundo religioso” (Moreira, p. 5, 1971), é a quantidade de pessoas que, em meio a contingência, transmite uma imagem ofegante da religiosidade. A observação desta procissão abre espaço ao entendimento que o autor Moreira (1971) coloca como a representação portuguesa e nativa. De acordo com DaMatta (1986), esta imagem pode ser a representação da reciprocidade da religião brasileira, onde todos querem ver algo digno e bondoso de si e de Deus.

Procissão do Círio de Nazaré. Fonte do autor. Data: 11/10/15

Durante o Círio, a manifestação religiosa não fica restrita apenas à avenida Nazaré. Todas as ruas, travessas e avenidas do entorno são bloqueadas pela Ctbel e assim a passagem de pessoas se torna livre. É notável a comoção da cidade de Belém. Existe neste dia, além da migração de fieis até a cidade, um enorme sentimento que nos constrói a identidade e a fé. 

As motivações e oportunidades que o Círio dispõe à cidade, para seus comércios e serviços, desde o turismo até a culinária, transforma a paisagem cotidiana em um evento emocionante. São diferentes produtos recriados e inventados todos os anos para esta celebração, são diversos pratos de comidas típicas amazônicas que se tornam conhecidos. Costumes, musicalidades, locais e ilhas que sem o Círio de Nazaré não teriam sido frequentados, logo, estariam abandonados.

Nesse sentido, o reconhecimento do Círio de Nazaré como Patrimônio da Humanidade irá fortalecer ainda mais a cidade de Belém em seus costumes e manifestações. 

Ao final da procissão deste ano, a religiosidade paraense se fez mais uma vez presente nas várias pessoas que tiveram suas preces ouvidas, na celebração junto às comidas típicas amazônicas, nas diversas formas de devoção a Virgem Maria.

Final da procissão do Círio de Nazaré.
Fonte do autor. Data: 11/10/15.

Imersão no Entorno do Círio de Nazaré

No domingo do Círio, as ruas principais da cidade se tornam restaurantes provisórios, lojas de suvenires e brinquedos. São diversos objetos que são feitos e expostos à venda nesta data nas ruas paralelas e perpendiculares.

Diferente da procissão da trasladação, o Círio de Nazaré percorre o sentido inverso, vem da Cidade Velha à Basílica de Nazaré. Nesse sentido, a variedade de vendedores que aguardam ao fim da procissão na travessa 14 de março e na avenida Generalíssimo D. para ocupar a avenida Nazaré é grande. Após a chegada da imagem de Nazaré, os devotos desafogam a via principal e seguem nas vias perpendiculares para seus destinos. Neste momento do final da procissão, fiz o registro da quantidade de vendedores que ocupam a avenida, os quais oferecem preços e valores a qualquer transeunte.

Avenida Nazaré no final da Procissão do Círio. Fonte do autor. Data:11/10/15. 

O entorno do Círio de Nazaré, até onde observei nesta imersão, é semelhante ao da Trasladação. As ruas ao redor se tornam mais alegre devido a este acontecimento ocorrer no horário do almoço, o que propõe um prato de comida regional para a refeição.

Dessa forma, a saída de pessoas pelas vias que cruzam a avenida Nazaré se torna um passeio familiar ou matutino, representa a comunhão da festa e da religião amazônica.

Entorno do Círio na travessa 14 de março. Fonte do autor. Data: 11/10/15


REFERÊNCIAS

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. RJ, Rocco, 1986.
DUBOIS, Padre Florencio. A devoção à virgem de Nazaré, em Belém do Pará. 2º edição, Revista e Augmentada, 1953.
LAPLANTINE, François. Uma Ruptura Metodológica: a prioridade dada à experiencia pessoal do “campo”, p. 149-151. IN: Aprender Antropologia. SP, Brasiliense, 2012.
MOREIRA, Eidorfe. Visão Geo-Social do Círio. Belém-PA. Ufpa, 1971.

Imersões no Arraial de Nazaré e no Entorno

Método para pesquisa


Para a imersão no Arraial de Nazaré foi utilizado o conceito do autor Laplantine (2012) a “aculturação invertida”, ou seja, uma ruptura metodológica que realiza a pesquisa etnográfica a partir da observação indireta das relações humanas. Esta prática não consiste em uma coleta de grande quantidade de informações, mas na capacidade do etnógrafo viver e impregnar-se das tendenciais principais da cultura estudada, de seus ideais e de suas angustias.

Nesse sentido, esta ruptura provém da antropologia entendida como microssociologia, a qual privilegia “o que é aparentemente secundário em nossos comportamentos sociais” (Laplantine, p. 153, 2012). Para Laplantine, a razão desta abordagem consiste no estudo do próprio contexto em que se situam os objetos, “ a rede densa das interações que estas constituem com a totalidade social em movimento” (Laplantine, p. 156, 2012).

Contudo, segundo Laplantine, “o pesquisador deve considerar o lugar sócio-histórico a partir do qual fala, como parte integrante de seu objeto de estudo” (Laplantine, p. 168, 2012). Assim, essa condição histórica e cultural determinada ao pesquisador o coloca também como observado, um sentido que dá possibilidade à reflexão da problemática do sujeito na própria atividade cientifica. Isso significa que tais condições podem “fornecer à nossa disciplina vantagens cientificas consideráveis, desde que saiba aproveita-lo” (Laplantine, p, 173, 2012).

Além do método descrito pelo autor Laplantine, a imersão no Arraial de Nazaré utilizou o texto do autor Roberto DaMatta, “O que faz o brasil, Brasil” (Rocco, 1986), especificamente o quinto e o sexto capitulo, “O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer” (p. 65-79) e “As festas da ordem” (p.81-93), onde DaMatta realiza uma descrição tanto dos “ritos de inversão”, como o carnaval, quanto dos “ritos de reforço”, que são as festas da ordem.

No capítulo “O carnaval, ou o mundo como teatro e prazer”, o autor DaMatta descreve que nas sociedades existem rotinas e ritos, trabalhos e festas. O cotidiano é feito pela rotina, pelo trabalho enquanto que o extraordinário são as festas, os rituais, as comemorações, momento em que a sociedade pode ser iluminada e ver a vida “por um novo prisma, posição, perspectiva, ângulo...” (DaMatta, p. 67, 1986).

O extraordinário, segundo o autor, pode ser celebrado de modo individual ou coletivo. Individualmente é representado por uma memória guardada e no sentido coletivo pela memória social, por momentos históricos de crise, acidente, festas ou milagres de uma sociedade. A diferença entre a rotina e o extraordinário consiste em inverter a hierarquia, o poder, o dinheiro e o esforço físico em alegria, liberdade, igualdade, e como descreve DaMatta, o momento do extraordinário “sugere um universo social onde a regra é praticar sistematicamente todos os excessos” (DaMatta, p.73, 1986).

Deste capitulo concluo a ideia de que o Arraial de Nazaré é uma forma de alegria que desconstrói a rotina, um momento “onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo” (DaMatta, p. 73, 1986).

De outro lado, o Arraial de Nazaré por pertencer a uma celebração religiosa que oferece ao indivíduo um momento próximo a igreja e que é realizado somente no período da celebração do Círio de Nazaré, pode ser considerado uma forma de promover a glorificação e manutenção da ordem cívica e religiosa. Como coloca DaMatta (1986):

“O patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas regiões neutras, mas hierarquicamente ordenadas, onde existe uma espécie de carnaval devoto ou terra de ninguém, já que todos podem encontrar-se com todos dentro desse espaço. Mas é preciso acentuar que essa carnavalização (ou troca de lugar) nada tem a ver com excessos ou com a possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo. (...) o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais. (...) São maneiras de marcar a contenção e de promover a uniformidade e a tranquila obediência dos fiéis ou servidores, já que tudo isso conduz a uma visão ordenada da própria ocasião formal. (...) a contenção do corpo significa, de certo modo, a liberdade do espírito, que pode ou não estar presente com a mesma convicção na solenidade. ” (DaMatta, p. 85-86, 1986).

Esta forma de perceber esta celebração exprime a noção de devoção e de ordem. O Arraial de Nazaré como uma festividade de origem cívica e religiosa propõe uma perspectiva etnográfica entorno das formas e conteúdos com que as pessoas se comunicam, em suas continências físicas e excessos. 

Como uma festa extraordinária, a perspectiva etnográfica está entorno das alegrias e descontrações, dos momentos surpreendentes que não existem durante o trabalho rotineiro. Nesse sentido, esta incursão propôs coletar situações e personagens com esta perspectiva.


Imersão no Arraial de Nazaré


Desde a primeira procissão do Círio de Nazaré, em 1790, o Arraial de Nazaré se faz presente. No primeiro ano da procissão, segundo Dubois (1953), a feira de produtos regionais da lavoura e indústria reuniu pessoas de vilas e cidades do interior através de uma circular que exigia a contribuição para a exposição.

Neste período inicial de celebração do Círio de Nazaré, o Arraial representava todo o movimento religioso no atual bairro de Nazaré. Em 1849, o juiz da festividade, Carlos Augusto Leraistre, descreveu as características do terreno do Arraial tendo uma perspectiva para o desenvolvimento da área:

“Quando cheguei a esta Província, somente havia uma estrada, que comunicava o campo da pólvora com o dito arraial, cuja praça do lado do leste da igreja, estava em mato. Reconheci que este sitio, por seu plano elevado, arejado e sadio, era próprio para nele se edificarem quintas, e para todo o tempo para nele estender-se à cidade, para que oferece excelentes proporções” (Leraistre apud Dubois, p. 68, 1953).

Nos anos seguintes, o Círio de Nazaré seria determinado a acontecer no segundo domingo de outubro e o Arraial se tornaria o conjunto de manifestações. No final do século XX, a praça Justo Chermont seria construída ao lado da Basílica de Nazaré onde, até os dias atuais, são montados brinquedos, barracas de comida regional e de artesanatos.

Neste ano, uma semana após a celebração do Círio de Nazaré, em uma terça-feira à tarde, percorri o Arraial de Nazaré caminhando pelo parque de diversões e pelo CAN sem ter um trajeto determinado. 

Este parque é composto por um parque de diversões, com aproximadamente 10 brinquedos com a capacidade para 20 a 30 pessoas, e uma tenda provisória com estrutura pré-montada de ferro coberta por lona branca resistente à água com divisórias entre as locações em tecido elástico.

As cadeiras e mesas de plástico que ali foram dispostas para o conforto dos frequentadores são de fácil remoção, se por acaso a chuva cair. Nesse sentido, a tenda pré-montada e os móveis foram projetados para resistirem às condições climáticas.

Os frequentadores, por sua vez, dispõem de calma e alegria. A maioria das pessoas que percebi passeiam pelo parque de maneira contemplativa, de mãos atadas com seus filhos e pares, e não se incomodam em esperar a próxima partida do brinquedo. São grupos que contem seus exageros, porém relaxam suas gestualidades naturais.

Parque de diversões no Arraial de Nazaré. Fonte do autor. Data: 19/10/15.

Diferente destas pessoas, os grupos de pessoas formados por adolescentes, em grande parte colegiais, são mais comunicativos e impacientes. A diversão é causada pelo agito do parque mais sempre entre os indivíduos. Há por exemplo, a questão do registro do momento ou a selfie, que constantemente utiliza o celular em direção a si mesmo para se fotografar, apenas para expor a si, o entorno e para divulgar em redes sociais.

Esta agitação frequente de grupo de jovens é acompanhada de risos e piadas com gestos desprovidos de continência. Este segundo grupo de pessoas é condizente, em parte, a utopia e ao extraordinário, contudo, compreensíveis.

Devido ao Arraial de Nazaré corresponder a uma festividade de representação religiosa e por ser incentivada a diversão da sociedade, a segurança nas entradas do parque, o policiamento na parte externa, a vigilância de técnicos nos brinquedos afronta a ideia do autor DaMatta (1986) quanto à celebração que permite a descontração porem num fundo impositivo de ordem.

Nesse sentido, o Arraial de Nazaré é também uma forma com que a igreja mantém sua ordem sobre a população. Naturalmente, isto é notado por estar localizado ao lado da Basílica e veridicamente pela existência de homens de preto em vários pontos do percurso. Isto é bom, por manter a segurança do parque que, ainda assim, é alvo de vandalismo.

No fim da imersão, uma forte nuvem de chuva se aproximava. Quando o sol já se encostava, as luzes da roda gigante se acenderam para mais algumas voltas noite a fora. Com a máquina fotográfica em mãos, registrei-a em uma imagem que marca este momento e um conclui a descrição contemplativa feita sobre o Arraial de Nazaré.

Roda-gigante do Arraial de Nazaré.
 Fonte do autor. Data: 19/10/15.

Imersão no Entorno do Arraial de Nazaré

Durante toda a celebração do Círio de Nazaré, a Arraial acontece próximo à Basílica. Vinte dias antes das procissões o Arraial é montado e após o recírio é desmontado. No entorno do Arraial acontecem shows religiosos, feiras de artefatos amazônicos, assim como em sua área existem brinquedos de diversão. 

As ruas paralelas e perpendiculares não são interditadas, porém a fiscalização dentro e fora do parque continua como nos dias de procissão. Com isso, a ida até a Basílica e a participação nas atividades que por ali acontecem são mais contemplativas que as demais festividades pois, não há preocupação com horário, seja com início ou fim de algum movimento.

É notável a calma com que os eventos continuam a acontecer. Na terça-feira em que fiz a imersão no Arraial e no entorno do mesmo, perguntei ao técnico da mesa de som, o qual equaliza os instrumentos para o palco principal, qual seria o horário da próxima apresentação e se em todos os dias ocorrem em um mesmo horário. Sem ter uma certeza, o técnico confirmou que as apresentações acontecem por volta das oito horas da noite mais podem variar de horário.  

Nesta tarde, já se passavam das seis da tarde e, no palco, não acontecia nenhum movimento, e ainda uma nuvem de chuva se aproximava. Fui caminhando em direção a Basílica de Nazaré e acompanhei o movimento dos devotos que se aproximam da grade onde a imagem da Santa é guardada neste período e amarram uma fita do Círio para que seu pedido seja realizado. São inúmeros pedidos feitos por meio desta grade que cerca o mostruário da Santa. É, contudo, um lugar de oferenda e fé, amplo e contemplativo, que nos eleva a alma e o espirito em louvor a Nossa Senhora de Nazaré.

Praça do CAN (Centro Arquitetônico de Nazaré.
 Fonte do autor. Data: 19/10/15.

Durante a quinzena desta festividade, as atividades e oferendas mantem um espirito religioso da cidade. A devoção à Nossa Senhora se encerra visivelmente com o feriado do Recírio que ocorre quinze dias após o Círio. Porém, espiritualmente, a religiosidade prossegue entre os belenenses o ano inteiro, nas missas, nas memórias, na compaixão e no respeito ao próximo.



REFERÊNCIAS

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. RJ, Rocco, 1986.
DUBOIS, Padre Florencio. A devoção à virgem de Nazaré, em Belém do Pará. 2º edição, Revista e Augmentada, 1953.
LAPLANTINE, François. Uma Ruptura Metodológica: a prioridade dada à experiencia pessoal do “campo”, p. 149-151. IN: Aprender Antropologia. SP, Brasiliense, 2012.